Por Rafael Molica (*)

Entre seus 19 e 20 anos de idade, Carlos Eduardo Robledo Puch entrou para a história policial argentina como o maior assassino civil daquele país e segue até hoje, mais de 40 anos depois, sob cárcere. Por puro prazer, o jovem matou 11 pessoas pelas costas ou enquanto dormia, estuprou duas mulheres e cometeu 17 roubos a mão armada. A trajetória que chocou uma nação atraiu o faro da produtora El Deseo, de Pedro Almodóvar e de seu irmão mais novo, Agustín, que trouxe para as salas “O Anjo“.

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A personalidade cruel caiu no colo de Lorenzo Ferro, jovem estreante nas telonas que imprime as características do personagem das páginas policiais com complexidade, encontrando o meio-termo entre a frieza a qual executa os crimes e o jeito cativante que transita nas cenas. O espectador consegue compreender com clareza como uma mente que se divertia com pequenos roubos chega ao ponto de não se preocupar com a vida da vítima que baleou enquanto leva em sua mochila vários pertences.

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Deixando seus cachos loiros mais compridos para o papel, o ator parece ter vindo do afresco angelical de uma igreja. Seu físico é intencionalmente aproveitado pelo diretor Luis Ortega. Carlito circula despreocupadamente de cueca conferindo ar andrógino por conta da ausência de pelos pelo corpo e Lorenzo, hipnótico, recorre até mesmo aos seus lábios rubros para sugerir infantilidade e sedução numa ciranda capaz de encantar quem o rodeia e a plateia.

Durante as ações dúbias a cada ato, a sexualidade fluida se impõe durante os roubos e assassinatos e envolve sua namorada e seu comparsa por quem se apaixona, o sisudo Ramón (Chico Darín, filho do ícone do cinema argentino Ricardo Darín). Em uma invasão a uma joalheria, pedras preciosas desaparecem enquanto os rapazes brincam ao se chamarem de Evita e Perón, cena a qual faz lembrar de certa forma “Bonnie e Clyde — Uma Rajada de Balas”.

Inspirado em fatos reais e no livro “El Ángel Negro”, Ortega, que já assinou longas como “Dromómanos” (2012) e “Verano Maldito” (2011), não dá complexidade apenas ao protagonista e oferece coadjuvantes nada rasos, convocando estrelas da dramaturgia argentina. O casal calmo Aurora (Cecilia Roth) e Héctor (Luis Gnecco) não se conforma como o único filho, excelente na escola e tranquilo, se transformou no “anjo da morte”, definição que ganhou da imprensa quando foi preso. Do outro lado, os pais de Ramón, Ana María (Mercedes Morán) e José (Daniel Fanego) funcionam como contraponto. Coniventes com os roubos, eles não se importam com a impulsividade de Carlitos, comemoram os feitos do rapaz que surpreende um pai ex-presidiário, o ensinam a elaborar seus delitos e até mesmo dão as cartas no jogo de malícia.

Além da mistura dosada entre prazer sexual e vida bandida, o filme respeita a ordem cronológica dos acontecimentos e não se permite perder o fôlego. As situações repletas de simbolismos ajudam a compor as personagens e são intercaladas com os planos de Carlitos. Ortega permite
ainda que a plateia acompanhe as empreitadas arriscadas como mero espectador e a coloca na mira do revólver e do maçarico do delinquente.

O filme não se limita a dar mera lição de moral e, sim, se propõe a oferecer o exercício da arte de fazer cinema com narrativa clara e que agradou as bilheterias, se tornando o título argentino mais visto pelo país em 2018. Talvez pelo respaldo internacional da El Deseo, “O Anjo” foi selecionado
para a mostra “Um Certain Régard”, do Festival de Cannes, em 2018, participou ainda do Festival de San Sebastián e se tornou o representante argentino no Oscar em 2019.

Como os crimes de Carlos Eduardo aconteceram entre 15 de março de 1971 e 3 de fevereiro de 1972, “O Anjo” proporciona um mergulho na década em questão. Com fotografia e design de produção elaborados, até os detalhes são pensados nos locais públicos, nas mansões de ambientes amplos que receberam visitantes indesejados e onde os jovens viviam.

O ator Chino Darín, filho de Ricardo Darín


O filme mostra que a criminalidade pode se esconder onde supostamente menos se espera. Embora seja de Ramón a infame frase “o mundo pertence aos ladrões e aos artistas”, é da mente de um infantil e despercebido rapaz que vem a crueldade dos atos, que dança solto e desajeitado até quando é cercado pela policial e intriga Almodóvar.

Assista ao trailer de “O Anjo”:

(*) Colaborador. Imagens: Divulgação